Um resumo deste artigo também foi publicado pelo site Latin American Bureau (em inglês). Muito obrigado ao LAB por ajudar a divulgar esta questão.
A vibrante cultura de rua e a onipresença da música ao vivo são primeiras impressões óbvias de qualquer um que visita o Brasil. Samba nas calçadas do Rio ou capoeira em Salvador são cenas e sons corriqueiros, e não só para turista ver: elas são parte da vida social brasileira há gerações. O maracatu de baque solto (às vezes chamado de maracatu rural) é menos amplamente conhecido, em parte por existir somente na Zona da Mata de Pernambuco, ao norte da cidade do Recife, região costeira onde se cultiva a cana de açúcar. Apesar de ter uma forte tradição carnavalesca, o cerne do maracatu de baque solto na verdade está em apresentações que viram a noite enfatizando a proeza poética dos mestres cantadores através de seus versos, na maior parte improvisados.
Esses eventos incluem as sambadas, que são competições que envolvem intensas disputas verbais, um duelo de sagacidade e jogos de palavras entre dois mestres já estabelecidos em diversos grupos de maracatu; bem como os ensaios, que são mais informais e abertos, e acontecem uma ou duas vezes por ano no bairro de origem do grupo, quando mestres visitantes são convidados pelos anfitriões a exibir seu talento pela noite adentro.
Os instrumentos musicais consistem de metais e percussão, tocados em compasso acelerado, mas fazendo uma parada abrupta cada vez que o mestre sinaliza estar pronto para começar a cantar, à capela, estrofes complexas dentro de uma estrutura rígida de ritmo e métrica para um público exigente, torcedores atentos a cada detalhe e prontos para vaiar com desprezo qualquer deslize do poeta. A competição da sambada tradicionalmente só termina ao nascer do dia, com os primeiros raios de sol revelando o mestre vitorioso. Esses eventos extraordinários acontecem normalmente nas noites de sábado a partir de setembro, mês tradicional de colheita da cana de açúcar, até o carnaval, quando os grupos encerram as atividades por um tempo antes de lentamente recomeçar o ciclo.
Relativamente desconhecido fora de seu local de origem até o final dos anos 80, o maracatu hoje em dia é celebrado como um símbolo da identidade e da tradição cultural do estado de Pernambuco. No entanto, como uma expressão artística associada com os pobres do campo e a classe trabalhadora, ele continua a se desenvolver num espaço liminar de disparidade socioeconômica e discriminação, mesmo recebendo reconhecimento e legitimação de outros setores da sociedade. Nada demonstra isso mais claramente do que a atual repressão à tradição das sambadas e ensaios baseada em novas e confusas leis que supostamente visam promover a “segurança pública”, permitindo às autoridades encerrar esses eventos às 2 horas da madrugada nas cidades do interior onde os maracatuzeiros surgiram e vêm crescendo durante os últimos cem anos.
A razão alegada para essa recente perseguição ao maracatu é, além da segurança, uma arbitrária lei do silêncio. Nos três anos em que eu frequentei eventos do maracatu na região da Mata Norte, posso contar nos dedos de uma só mão o número de altercações violentas que presenciei. Os maracatuzeiros, como são chamados os entusiastas do maracatu, fazem todo o possível para prevenir que um conflito se transforme em briga. Na verdade, não existe lugar mais seguro às 3 da madrugada naquelas cidadezinhas do que no meio de uma apresentação de maracatu: é uma comunidade que toma conta dos seus integrantes, se auto-policia e trata visitantes e forasteiros com a mesma cortesia com que se trata um hóspede em casa. Quando tudo é forçado a terminar prematuramente, as pessoas ficam por conta da própria sorte ao saírem da festa pelas ruas mal-iluminadas, no meio da noite, facilmente sujeitas a assaltos. No primeiro ensaio a terminar dessa maneira em Nazaré, eu conheci um turista de São Paulo que acabou dormindo no chão da sede do maracatu, depois do evento ter sido encerrado às 2 da manhã, porque o primeiro ônibus de volta ao Recife não sairia até às 7.
Para alguém de fora, o que pode parecer uma expressão lúdica e “espontânea” de uma cultura regional pitoresca é na verdade o produto de uma quantidade tremenda de planejamento, organização e sofisticação artística dentro das comunidades do maracatu, o produto da experiência coletiva de muitas gerações. As diretorias dos grupos são capazes de ao mesmo tempo lidar com as exigências burocráticas para realizar os eventos, pagar seus músicos, fazer sua própria publicidade e assegurar o apoio dos empresários locais, como donos de bares ou pequenos comerciantes que podem contribuir com doações, seja para manter seu prestígio na vizinhança ou simplesmente porque também apreciam a música. Os integrantes do maracatu usam com frequência a imagética do guerreiro valente, representada na misteriosa figura do caboclo de lança, seu símbolo mais proeminente e visualmente marcante durante o carnaval. Esses indivíduos se apresentam com chapéus enormes como uma juba, lanças de dois metros de altura adornadas com centenas de retalhos de tecido, e mantos – ou “golas” – que levam milhares de lantejoulas formando mosaicos ornamentados – tudo feito com suas próprias mãos durante vários meses, no longo período que separa os carnavais. Lendas sobre grupos rivais duelando entre si nas estradas de terra que cortam os canaviais fazem parte da mitologia interna do maracatu, que também é imbuída das tradições religiosas neo-indígenas e africanas da jurema, do xangô e do catimbó. Mas apesar de toda a virulência aparente na imagética colorida e na música frenética do maracatu, na prática seus encontros hoje em dia são amigáveis, festas aonde famílias inteiras costumam comparecer juntas. O músico pernambucano Siba, que incorporou o som do maracatu nos seus discos, contribuindo bastante para o aumento do prestígio dessa música no cenário nacional, escreveu uma carta aberta em janeiro deste ano sobre essa nova ameaça à tradição do maracatu:
Tem gente que enxerga uma romântica rebeldia no maracatu.
Mas o maracatuzeiro na verdade está sempre fazendo acordo de paz. Maracatuzeiro é quem espera o culto evangélico terminar pra começar a festa. É quem cancela ensaio quando morre alguém do bairro em data próxima. Maracatu também tem que estabelecer acordo com a polícia.
Pra fazer seu ensaiozinho de maracatu você prepara um ofício e vai na delegacia e no quartel de sua cidade informando sobre a realização da festa e solicitando a presença da polícia no local. Esta aparece sempre, em algum momento da noite, observa de longe, eventualmente fazendo alguma batida nos bares ao redor mas nunca, nunca, entrando dentro do maracatu para interferir. Nesses anos todos eu nunca presenciei situação de tensão entre o maracatu e a polícia. Sempre entendi isso como um caso bem resolvido de acordo entre o poder e o costume local, mas recentemente essa realidade tem mudado.
Os maracatus têm sido sistematicamente impedidos de realizar seus ensaios até o amanhecer. No dia 11 de janeiro passei uma boa parte da noite de ensaio do grupo que faço parte, o Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré da Mata, argumentando com os policiais que ali estavam sobre a posse ou não do direito de seguir com a festa até de manhã, já que tínhamos o documento com a permissão e eles tinham a ordem superior de nos mandar parar.
O ensaio do maracatu Estrela Brilhante foi autorizado a continuar depois dessa longa negociação, que sem dúvida foi influenciada pelo status de Siba não só enquanto alguém nacionalmente conhecido, mas também como uma pessoa de pele clara e um integrante da elite artística do Brasil, dentro de uma sociedade extremamente classista. Ele observa que a maioria dos outros maracatus mais famosos da região não teve tanta sorte e foi obrigada a encerrar seus ensaios mais cedo. Nenhum dos veteranos mais antigos desses grupos de maracatu, cujas lembranças remontam aos anos 60, consegue se recordar de qualquer proibição parecida, em qualquer tempo. Siba também observa que em contraste a esses eventos locais organizados pelos próprios maracatuzeiros, os eventos de maracatu patrocinados pelas prefeituras locais ou por “projetos culturais” com o apoio do governo estadual ou federal parecem ser curiosamente imunes a essas leis do silêncio, um fenômeno também observado por mim durante o meu trabalho de campo. Quando é conveniente, políticos e órgãos do governo usam a popularidade do maracatu junto à classe trabalhadora e se apropriam dos seus símbolos – o ex-governador Eduardo Campos (candidato à presidência do país até sua morte prematura em agosto passado) chegou até mesmo a usar caboclos de lança como uma espécie de guarda de honra durante a cerimônia de posse do seu segundo mandato em 2010.
E no entanto, esses episódios de repressão têm acontecido com frequência cada vez maior desde que as primeiras dessas novas leis de “segurança” começaram a se proliferar em 2011, numa consequência inesperada do programa Pacto Pela Vida, instituído pelo governo de Pernambuco para combater a violência e que chegou a ganhar prêmios da ONU e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. O exemplo dramático que precipitou uma denúncia formal e uma audiência pública no Recife em fevereiro deste ano ocorreu em Nazaré da Mata, durante um ensaio comemorativo dos 96 anos do grupo Maracatu Cambinda Brasileira. Um dos últimos maracatus que continuam a realizar eventos na sede original, dentro de um antigo engenho de açúcar, a Cambinda fez sua festa a vários quilômetros de distância do centro da cidade, mas ainda dentro dos limites do município. Com a chegada de uma presença policial desproporcional, as festividades foram obrigadas a terminar mais cedo, apesar de toda a papelada autorizando o evento estar em ordem. A Cambinda Brasileira é uma instituição do maracatu comparável em prestígio local às grandes escolas de samba do Rio como a Portela ou a Mangueira; um grupo que tem entre os seus egressos vários dos mais respeitados poetas, caboclos e artesãos da tradição. Eles ganharam ainda mais reconhecimento na forma de um centro cultural, ou “Ponto de Cultura”, uma das muitas iniciativas progressistas criadas durante a gestão do ex-Ministro da Cultura (e músico de prestígio internacional) Gilberto Gil em 2003, com o objetivo de reforçar a criação artística em todo o vasto território brasileiro, através de um programa de incentivos descentralizado. Apesar de todo esse reconhecimento, e mesmo diante dos vários jornalistas, fotógrafos e turistas presentes na comemoração do aniversário da Cambinda Brasileira, a polícia foi em frente e acabou com a festa. Como disse Siba:
Ensaio de maracatu vai até o amanhecer, por costume secular. Para o maracatuzeiro, maracatu só é maracatu se amanhece o dia. Se não, vira “folclore”, palavra usada na região para denominar todo tipo de apresentação artificial, show pra turista, filmagem pra tv, etc.
A importância de amanhecer o dia fica mais fácil de se entender se for pensada talvez como uma coisa mística, religiosa. Parece simples, mas não é. Precisa-se de uma noite inteira mas não se trata de quantidade de tempo, e sim da possibilidade de suspensão do tempo. Fazer o tempo parar: as pessoas que realizam o trabalho braçal mais pesado só sabem se divertir também levando seu corpo ao limite na dança, no canto, no malabarismo mental da rima.
Na audiência pública que aconteceu no dia 14 de fevereiro no Recife, os maracatuzeiros e seus aliados apresentaram suas queixas ao Ministério Público e à Polícia Militar, que como era de se prever negaram qualquer forma de perseguição ou discriminação. As autoridades alegaram que seus interesses eram somente a segurança pública e a ordem (que aparentemente se manifesta como uma fixação bizarra em salgar a terra com sanitários químicos). Elas dissimularam e empurraram a responsabilidade de acordo com sua própria tradição – a tradição burocrática. O músico Maciel Salustiano, cujo pai, Manoel Salustiano, foi o fundador da Associação dos Maracatus de Pernambuco nos anos 80, enfatizou que o maracatu não é só fantasia bonita no carnaval, mas sim um sistema de crenças e tradições. Seu irmão Manoelzinho, atual presidente da Associação, lembrou que muitos maracatuzeiros se sentiam coagidos a assinar documentos entregues a eles pela polícia. Ao longo da audiência, ficou evidente que o Maracatu Cambinda Brasileira havia assinado um documento de autorização drasticamente diferente do formato usual a que seus representantes estavam acostumados. O novo formulário, assinado sem que os maracatuzeiros estivessem cientes de todo o seu conteúdo e ramificações, estipulava um pedido de autorização para realizar um evento com mais de 3000 pessoas – um número preenchido pelo policial de atendimento – e teria que terminar às duas horas da manhã. Em realidade, estima-se que o evento tenha contado com a presença de 500 pessoas, um número relativamente grande para os padrões do maracatu.
A escritora e jornalista Dra. Maria Alice Amorim, coordenadora de um projeto que visa registrar o maracatu como patrimônio cultural imaterial junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), falou sobre a necessidade de diálogo e as potenciais consequências de se aplicar as leis de segurança do estado às manifestações da cultura popular. Siba enfatizou: “o maracatu quer a presença da polícia, ele precisa da presença da polícia, mas maracatu não é assunto de polícia. O maracatu tem que ser entendido como uma ferramenta de civilização. A gente faz bem à sociedade.” A professora de Direito da UFPE, Dra. Liana Cirne Lins, acrescentou que não havia base legal para caracterizar essas reuniões como grandes eventos. Ela argumentou que o que estava acontecendo era claramente discriminatório, racista e ilegal: ninguém vê a polícia encerrando os grandes eventos realizados pelos ricos, e as ações da polícia são consistentes com o legado de um tratamento desigual deixado por um regime aristocrático e escravocrata. Não há nenhum registro de morte ocorrida em qualquer evento do maracatu, e no entanto as autoridades constantemente se referem ao programa Pacto Pela Vida como justificativa para aplicar a lei de maneira errônea e arbitrária.
Se as políticas culturais não agirem para impedir a repressão às práticas centrais do maracatu, “folclore” é só o que vai sobrar.
Na sua carta, Siba reconhece sua dívida artística com os cantadores regionais que foram seus mestres num longo processo de aprendizagem – poetas como Barachinha, Dedinha, João Paulo e Zé Galdino – “que são gigantes aqui, mas desconhecidos mesmo no Recife, terra do Manguebit”, referindo-se ao movimento dos anos 90 que contribuiu para o florescimento de uma reinvenção criativa na música, no cinema e nas artes plásticas. O maracatu de baque solto está finalmente ganhando reconhecimento e respeito de maneira mais ampla, entrando em voga em alguns círculos artísticos de cidades tão distantes quanto São Paulo e Paris, com alguns grupos viajando para festivais em Dacar e Nova Orleans. E ainda assim Pernambuco, ou talvez o Brasil, de maneira geral, se coloca na dúbia posição de celebrar a diversidade e a inclusão social do seu patrimônio artístico enquanto ao mesmo tempo continua a perseguir e excluir muitas das pessoas responsáveis por ele. Isso pode estar perto de mudar num futuro próximo. A proposta de incluir o maracatu e outras formas relacionadas de expressão artística em Pernambuco (como caboclinhos, cavalo marinho, e o maracatu nação) no registro de patrimônio imaterial do IPHAN, garantiria proteção constitucional ao maracatu de acordo com o estatuto da UNESCO. Nos meses que se seguiram à audiência em fevereiro, a cidade de Nazaré da Mata, que tem a maior concentração de grupos de maracatu rural, baixou um decreto permitindo que os eventos continuem ininterruptos. Mas queixas sobre a ação da polícia fechando eventos foram recebidas em 32 municípios de Pernambuco; a luta não vai acabar até que todos os grupos de maracatu possam praticar sua tradição sem medo da repressão policial.
Há uma frase antiga no Brasil que sublinha essa atitude dos poderosos: “Aos amigos, tudo; aos outros, a lei”. As leis são aplicadas numa espécie de escala móvel que raramente atinge os privilegiados, sendo direcionadas aos que são menos capazes de ter uma representação justa nos fóruns políticos onde as decisões são tomadas. A tradição musical, poética e carnavalesca do maracatu foi criada por trabalhadores da cana de açúcar numa das regiões mais dramaticamente afetadas pela longa história da escravidão no Brasil. Seus descendentes, muitos deles expulsos de suas terras quando a industrialização das usinas açucareiras continuou a concentrar cada vez mais território nas mãos de poucos, agora trabalham na construção civil, dirigindo táxis e caminhões, ou prestando serviços básicos nas cidades. Em meio a tudo isso, eles conseguiram criar, manter e refinar uma forma artística tão complexa, fascinante e envolvente quanto qualquer uma que eu tenha encontrado. Para citar mais uma vez a carta de Siba:
(Na festa do maracatu) se dança um ritmo que só existe ali. Não tem um passo único, estereotipado, cada um dança de um jeito, no estilo da coisa, mas ninguém dança igual. A Manobra, coreografia que abre e fecha a festa, é um movimento intrincado que envolve dançarinos, músicos e poetas numa constelação em movimento que parece a imagem do caos que gerou o mundo, mas que se move com a graça e a beleza de um futuro mundo melhor possível, pra quem souber ver.
Os melhores poetas do maracatu têm a habilidade de cantar sobre um leque impressionante de assuntos: sobre a história da sua região e do Brasil; sobre os desafios e prazeres do dia-a-dia; comentando sobre eventos no Japão e no Iraque, sobre o meio-ambiente, o desemprego ou a violência; eles cantam sobre questões morais, Deus, e uma vida de virtude. Suas vozes merecem ser ouvidas num Brasil mais inclusivo. No entanto, por agora, como cantou o poeta Zé Galdino na noite em que a festa de aniversário da Cambinda Brasileira foi obrigada a acabar, “A lei em vez de cobrir, nega nossa cobertura”.
Tradução: Martha Elisa
A cidadania para poucos, a pobreza, a falta de uma cultura de respeito aos direitos humanos, a discriminacao racial e o racismo, a inacessibilidade a justica, o machismo e as praticas inadequadas de seguranca publica resultam em indices de violencia extremamente elevados.