Sobre esse site, o projeto do arquivo virtual, e o pesquisador
Com base no trabalho de campo etnográfico realizado entre 2009-2012 em Nazaré da Mata e arredores, voltei em 2022 para destacar um elemento do maracatu rural que tende a ser negligenciado pelos discursos oficiais em torno das práticas dos maracatuzeiros: seus desafios improvisados de canto-poesia, ou sambadas.
O que é uma “sambada”?
Esses eventos, que tradicionalmente começam nas noites de sábado e se desenrolam de acordo com uma sequência estabelecida de interlocuções poéticas de complexidade crescente, até o amanhecer do domingo, são intensas batalhas verbais de inteligência rápida, humor e jogos de palavras. Mas vão além: são repositórios vivos de comentários coletivos, testemunhos cantados em cadências declamatórias, inscrevendo e reinscrevendo as memórias de um povo com uma relação complexa com a terra que muitas vezes cultivaram mas raramente possuíam, memórias de famílias forçadas a sair do campo e mudar-se para cidades cada vez mais populosas. As sambadas são provas de fogo onde as reputações desses poetas da oralidade são feitas ou desfeitas, cada cantor apoiado por seu batalhão de simpatizantes e admiradores.
Esses eventos noturnos acontecem durante todo o ano, mas especialmente durante a colheita da cana-de-açúcar, e eram tradicionalmente realizados nos bairros onde os grupos estão sediados, em vez das apresentações mais formais de carnaval ou festas folclóricas. Embora a celebração anual do carnaval ocupe um lugar óbvio, de profunda importância para os grupos de maracatu, os embates regulares de poesia cantada são um fenômeno pouco estudado, que persiste há décadas, durante as quais as indústrias de cana-de-açúcar e etanol transformaram a paisagem. Muitos habitantes da vizinha capital, Recife, desconhecem completamente que essa tradição existe, enquanto as classes média e alta das cidades do interior a veem com indiferença ou desdém.
A persistência dos desafios de poesia cantada reflete a tenacidade de um povo determinado a preservar suas práticas e tradições, resistindo às repressões, indignidades e alienação de uma sociedade fundamentalmente racista e classista. No Brasil da experiência vivida (em lugar de um Brasil imaginado ou idealizado), a identidade cultural nordestina é muitas vezes utilizada de formas conflitantes ou contraditórias. Por exemplo, a identidade nordestina tem sido alvo de desprezo e ataques preconceituosos (como nas últimas eleições presidenciais), ao mesmo tempo em que é celebrada por figuras reacionárias da elite nordestina, defendendo uma certa versão de conservadorismo cultural ou mesmo do separatismo regionalista.
Às vezes, a repressão é menos sutil ou simbólica e mais direta. Os fundadores do maracatu de baque solto que migraram do campo para Recife e periferia já foram proibidos de desfilar no carnaval oficial da cidade, e tiveram suas tradições menosprezadas como uma imitação desfigurada do maracatu de baque virado, ou Nação, mais popular. Mas não há necessidade de retroceder muito na história para encontrar tais exemplos, quando a raiz dessas atitudes e crenças arrogantes ainda segue viva. Recentemente, na última década (2011-2014), os maracatus foram submetidos à ostensiva repressão do Estado por meio da (má) aplicação de uma lei supostamente elaborada para “garantir a segurança pública”, que criminalizava a prática das sambadas noturnas que são o tema deste site e, eu diria, a força vital e a essência da tradição. Depois de uma longa luta de audiências públicas e contestações legais, os maracatus recuperaram o direito de realizar sambadas. O fato de esse incidente ter acontecido no século XXI sublinha a necessidade de permanecer vigilante contra as correntes antidemocráticas do autoritarismo que, quase 40 anos após o fim da ditadura militar, ainda se movimentam sob a superfície e não podem ser contidas apenas pela mudança de regime. Sem luta constante, essas correntes podem se tornar uma ressaca destrutiva com muita facilidade, como vimos com a ascensão do neofascista Jair Bolsonaro e suas legiões de apoiadores, que cruzavam divisões de classe e de raça.
Vislumbro este arquivo aural como uma pequena ferramenta nessa luta contínua. Como um recurso gratuito e aberto, este projeto busca reequilibrar as representações disponíveis do maracatu rural, enfatizando uma tradição viva à qual a própria comunidade do maracatu atribui imenso valor. Embora seja um trabalho em andamento, o objetivo é ter um banco de dados pesquisável de gravações, à medida que forem disponibilizadas para este site. Nele, o ouvinte interessado poderá encontrar na poesia cantada um comentário multivocal sobre as realidades locais, regionais e nacionais de pessoas que raramente são levadas em conta nos arquivos de jornais ou agências estatais. Em meio às expressões coloquiais e à “linguagem matuta”, o ouvinte atento poderá entrever outros valores e modos de estar no mundo. O ouvido atento escutará coisas que desafiam e complicam muitos dos conceitos nebulosos que continuam a encantar e inspirar grande parte da humanidade, desde a noção de “progresso” e “modernidade” à ideia de “autenticidade”. E, acima de tudo, espero que este repositório cultural ajude a humanizar os praticantes de maracatu, que continuam inovando e encontrando novas formas de narrar e moldar suas próprias histórias.
As gravações de campo deste arquivo foram feitas por Sérgio Veloso (Siba), Maciel Salustiano, Belmiro de São Lourenço da Mata, além de alguns desconhecidos.
Se você tiver informações adicionais, correções factuais ou apenas boas lembranças que gostaria de compartilhar sobre qualquer um dos eventos mencionados aqui, envie um e-mail para admin@baquesolto.org. Qualquer pessoa com fitas cassete relevantes para este projeto é encorajada a entrar em contato como colaboradora.
Sobre o pesquisador
Meu nome é Chris Estrada e criei este site para acompanhar minha pesquisa em andamento. Minha pesquisa mais recente envolve um trabalho de campo etnográfico e de arquivo sobre a poesia cantada e improvisada, a música, e a tradição carnavalesca do maracatu de baque solto, na região da Mata Norte do estado de Pernambuco, Brasil, onde vivi de 2008-2012, e novamente em 2015 e 2022. Também fiz trabalho de campo em comunidades diaspóricas de imigrantes no sudoeste e sul da Flórida, e sobre organização comunitária e movimentos sociais entre ativistas porto-riquenhos em Humboldt Park, Chicago. Atualmente, vivo em Michigan, no meio-oeste americano.
Tenho doutorado em antropologia e história pela Universidade de Michigan – Ann Arbor. Minha pesquisa foi financiada pela Fundação Ford, FLAS Fellowships (bolsas para estudos regionais e de línguas estrangeiras), programa Fulbright-Hays e uma bolsa Fulbright Scholar. Gosto de praias à luz de velas e longas conversas. Também sou um músico que ocasionalmente se envolve em composição, performance e produção de áudio.
Vida professional
Se você realmente quer saber sobre minha vida profissional, pode baixar meu currículo aqui.